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Foto do escritorRafael Marques

Caetano Veloso: inocência, cinismo, desolação e redenção

Ao observar a discografia de Caetano Veloso consigo ainda ficar surpreso pelo seu constante ímpeto de ultrapassar limites, de se lançar em terrenos desconhecidos, de seguir seu instinto e seus impulsos em favor de algo maior que ele mesmo, em favor da Arte. Não se importa em agradar expectativas dos fãs ou da crítica especializada e não se envergonha de abraçar descaradamente o popularesco ou o suicídio comercial de experimentalismos extremos. Tal postura sempre coloca Caetano em comparação direta com Bob Dylan, que também passeia por caminhos tortuosos e incoerentes e não se preocupa em agradar ninguém exceto a si mesmo.


Como todo grande artista, funciona como um radar de onde está inserido e sempre se posiciona à frente dos demais e aponta novos caminhos em sua Arte. O início de sua carreira, que coincide com um momento de transformações radicais em todo mundo (os movimentos de contracultura, ditaduras na maioria dos países sul-americanos, swingin’ london, the summer of love), é o maior exemplo deste espírito catalisador e está impregnado na música que criou neste período.

Soa clichê atualmente, mas a música Tropicália é a que melhor resume o espírito de seu primeiro disco (Caetano Veloso, 1968): o velho e o novo, o urbano e a roça, pop e o erudito se misturam de forma inesperada e exuberante. Não há barreiras e preconceitos, tudo é válido e o clima é festivo como o carnaval, absurdo como uma viagem de ácido e contundente como o choque de realidade da ditadura militar.

O AI-5 aperta o cerco sobre todos. Caetano gravou sozinho o vocal e violão das músicas de seu segundo disco em Salvador, após partir do Rio de Janeiro por ter sido preso pelo governo ditatorial. O disco conta ainda com a participação ativa de Gilberto Gil e a finalização do álbum ficou a cargo do maestro Rogério Duprat. Diante do estado lacônico de sua situação, o disco conta apenas com uma capa branca e a assinatura de Caetano. Seria uma “bandeira branca” àqueles que viam em Caetano e seus companheiros tropicalistas uma ameaça quando, na verdade, queriam apenas expressar sua Arte? Talvez por isso o álbum tenha um viés menos político, mas mais psicológico. A psicodelia é mais aparente para reforçar os sentimentos de desespero, desolação e angústia. A vontade de fugir daquela situação fica estampada em suas músicas. “Navegar é preciso, viver não é preciso...”, canta melancolicamente em Os Argonautas. Como que antevisse seu futuro, aprofunda mais sua incursão na língua inglesa nas belas The Empty Boat e Lost in Paradise. Caetano passa a ser do mundo.

Forçados ao exílio, Caetano, Gil e suas famílias passam a viver em Londres. A tristeza, a depressão e a saudade tomam conta de suas almas e isto se vê refletido nos seus discos gravados longe de casa (ambos homônimos). Os álbuns contam com músicas, em sua maioria, em inglês e com arranjos econômicos e uma crueza direta que destoava completamente do que tinham feito até então. Caetano clama pela família e por boas notícias (Maria Bethânia), funde o cancioneiro britânico ao brasileiro (If You Hold a Stone), externa seu deslocamento em psicodelia (London, London) e sua saudade num baião-folk (Asa Branca). Ao expurgar seus demônios, Caetano Veloso nos entrega uma das obras confessionais mais sinceras e emocionantes já registradas no universo pop, do nível de obras-primas como Pink Moon de Nick Drake ou Plastic Ono Band, de John Lennon.

Em 1971, teve uma permissão de retorno breve ao Brasil para a comemoração de 40 anos de casamento de seus pais e foi “convidado” pelos militares a fazer uma canção em homenagem à rodovia Transamazônica (em construção à época). Ele declinou do convite mas daí veio o nome do seu novo disco, Transa. Sob a direção musical de Jards Macalé, o disco foi gravado em Londres totalmente ao vivo em estúdio, em quatro sessões e com o mínimo possível de retoques e overdubs. Há uma complexidade maior no instrumental, com uma formação clássica de rock acrescida de percussão. Em termos de letras, Caetano aprimora mais ainda suas composições em inglês e as funde com diversas referências do universo popular, não importando sua origem. Ao mesmo tempo que referenciava uma canção recente dos Beatles (The Long and Winding Road em It´s a Long Way), não perdia de vista as canções de sua pátria (como em You Don´t Know Me, em que relembra a Hora do Adeus de Gonzagão). Há ainda poesia musicada (Triste Bahia, de Gregório de Matos, também um exilado em sua época) e a primeira homenagem que Caetano viria a fazer para o sambista Monsueto Menezes (Mora na Filosofia). Ao invés de soar um disco confuso ou pedante, as letras e música fluem, como se tudo nascesse do mesmo local, sem preconceitos, sem barreiras. Caetano Veloso atingia em Transa seu ápice criativo.

Sob uma perspectiva histórica percebemos que Transa conclui um ciclo na carreira de Caetano. Uma jornada intensa, curta e impactante, em que todas as facetas de um jovem baiano foram colocadas à prova e, diante destas provocações, pressões e angústias, nos brindou com músicas que até hoje falam alto em nossas mentes, corações e almas e que definiram novos patamares e direções na Música.


E isto era apenas o começo. It´s a long way...


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