Natural de Diamantina, Minas Gerais, César Lacerda é um dos músicos mais elogiados de sua geração. Desde o lançamento de seu primeiro álbum em 2013, Porquê da Voz, Lacerda tem conquistado público e crítica graças a uma simbiose musical que consegue conciliar melodias e versos de rara beleza.
Sua canções já reverberam nas vozes de artistas icônicos como Maria Bethânia, Gal Costa, Zezé Motta, Lenine e Maria Gadú. Não obstante, César também já compôs ao lado de renome como Ronaldo Bastos, Chico César, Paulo Miklos e Jorge Mautner, o que só prova sua versatilidade como compositor. Como se não bastasse, o músico é também diretor artístico e já produziu uma série de discos e singles de outros artistas. Espiral (2019), disco de Ceumar, e Tenho Saudade Mas Já Passou (2019), de Luiza Brina, são alguns dos bons exemplos de trabalhos os quais já contribuiu.
Após 10 anos de estrada, 5 álbuns, 1 EP e 3 singles lançados, o músico decidiu, como forma de celebração, revisitar de forma intimista suas composições em novo disco intitulado Década. Com concepção de Filipe Catto, no novo trabalho Lacerda faz um apanhado de sua composições, cantando canções presentes em seus discos, traz outras que ficaram conhecidas nas vozes de grandes intérpretes (como “Minha Mãe”, parceria de Lacerda com Jorge Mautner, gravada por Gal Costa e Maria Bethânia) e apresenta duas inéditas: “Faz o teu” e “O amor fincou raízes por aqui”.
Em entrevista ao Phono César fala suas origens musicais, a felicidade de ver suas canções ecoarem nas vozes de outrem, o seu caráter multifuncional em termos musicais, reflete sobre sua primeira década de carreira, o processo de gravação do novo disco, a influência que locais em que já residiu no seu fazer artístico, planos futuros e muito mais. Confira!
Fotos: Lou Alves
Phono: Toda entrevista é uma oportunidade para conhecer mais um artista e, possivelmente, apresentá-lo para um novo público. Nesse sentido, gostaria que você falasse em como se deu sua caminhada no meio musical? Em que momento você percebeu que ser um musicista seria uma opção para toda a vida?
Nasci no fim dos anos 1980 numa pequena cidade do interior de Minas Gerais chamada Diamantina, na região do Vale do Jequitinhonha. Apesar de pequena (quando nasci a população era de, mais ou menos, 30 mil habitantes), essa cidade foi emblemática em diversos momentos da história do Brasil – para além da sua peculiaridade e protagonismo no trágico período colonial, Diamantina é a cidade de origem de personagens de vulto como Xica da Silva e o presidente Juscelino Kubitschek; também é a cidade onde, reza a lenda, João Gilberto teria definido, em
meados dos anos 1950, traços do que viria a ser chamado adiante de bossa-nova; ainda, quinze anos depois de João, seria a cidade onde o pessoal do Clube da Esquina comporia parte do repertório do álbum homônimo seminal.
Minha mãe é pianista e, na altura do meu nascimento, era a diretora do Conservatório de Música de Diamantina, e alguns anos mais tarde, ainda na minha primeira infância, viria a abrir uma escola de musicalização infantil – esses fatos dão um pouco o tom do quanto a vida cultural ali era pujante e diversificada. Portanto, eu e os meus irmãos, fomos criados nesse ambiente, onde música e brincadeira se confundiam. Diria até que tivemos uma educação bilíngue: português e música. Hoje somos todos músicos.
Então, para mim, é um pouco difícil precisar quando eu teria me “tornado” músico. Para ser mais assertivo, sinto que sempre fui. Pelo menos, sempre estive embrenhado, envolvido, pertencente àquele território, àquela geografia. De todo modo, quando eu tinha 16 anos, já vivendo em Belo Horizonte, o meu irmão, Sérgio Rodrigo, me perguntou: ‘e aí, você vai prestar vestibular para qual curso?’. Lembro de responder que gostava de cinema e psicanálise. Ao que ele retrucou: você
é músico, tem que fazer música. Então, não teve jeito. O destino estava selado.
Phono: Em 2023 você celebra 10 anos de estrada e colheu diversos elogios da crítica. Porém, para um cantautor como você, acredito que uma das maiores realizações reside no fato de ver composições de sua autoria ressoarem em obras de outrem. Como você lida com esse diálogo/aproximação? Como é ver que sua obra é admirada e gravada por colegas do meio?
Tive a felicidade de ter uma canção minha registrada em um disco de um outro artista muito cedo na minha trajetória. Ainda além, os convites para eu compor para outros álbuns, para realizar parcerias, tudo foi surgindo muito naturalmente. E com relativa frequência. Então, aquilo me pareceu ser o caminho natural. O óbvio. Daí, depois de um tempo é que fui percebendo que não era, propriamente, comum. Fui observando que aquela era uma característica própria do meu trabalho, da minha trajetória artística. E assim, vi em mim, na minha obra, um traço distintivo. Notei que eu tinha aptidão, e mais, gostava de me ouvir em outras vozes. Fui, então, realizando
internamente, e isso me soa cada vez mais forte, que a composição é o gesto do encontro, da colaboração. Fui gostando disso e fui me construindo, me constituindo a partir desses processos cooperativos, associativos. E de mútua admiração.
Hoje, somam-se mais de sessenta discos lançados por outros, outras e outres artistas com canções de minha autoria. Vestir-me de tantas vozes assim... Isso pra mim é realização.
Phono: Além de ter suas canções gravadas por outros artistas, você tem uma prolífica discografia solo e também atua como produtor. Colocando numa balança todas as funções as quais você exerce quais são diferenças fundamentais inerentes a cada uma delas? Você tem predileção por alguma dessas atividades?
Quando criança, fantasiando sozinho no quarto, emulando com os cabides as baquetas do baterista, com a vassoura a guitarra ou o pedestal do microfone, eu me imaginava apenas como o frontman. No entanto, com o tempo e na prática, fui me deliciando com a experiência diversa que a música proporciona: tocar com outras pessoas, os mais variados instrumentos, inventar mundos (discos, espetáculos...), compor... A atividade musical, na sua multiplicidade, é mágica. E sinto um gozo todo especial pela possibilidade de participar das muitas fases na cadeia produtiva.
Por exemplo, nos últimos anos tenho me dedicado a fazer direção artística e produção musical em projetos de outros artistas. Algo profundamente instigante. Isso implica numa reconfiguração do meu jeito de pensar a música. Pois, preciso mergulhar num outro. Claro, dou minhas contribuições, apresento minhas pessoalidades, minha forma de ver, de escutar, de entender. Enfim, apresento a minha biografia. Mas, sinto que há algo mais profundo. Que é um processo que ganha vitalidade no diálogo. A dimensão verdadeiramente produtiva se dá pela colaboração. Então, é algo muito bonito. Muito potente. E que eu adoro fazer.
E isso me realiza também no sentido de que consigo escoar o meu desejo, as minhas fantasias para muitos projetos que não, exclusivamente, os meus. Não fico com aquela obrigação de só produzir para mim. Posso sonhar para outras pessoas. Com outras pessoas.
Phono: 10 anos de trajetória é uma marca simbólica e passível de muitas reflexões. Então como você observa o período? Dentre as projeções de carreira feitas ao longo do tempo quais você realizou e quais ficaram pelo caminho?
Quando comecei o cenário era bastante distinto; apesar de não haver assim tanto tempo. Sou da geração da utopia informacional. Acreditávamos, no início do século, que a internet poderia transformar o mundo, as democracias, os modos de trabalho e produção, as relações humanas. O que, de fato, aconteceu. Só não imaginávamos que seria deste modo. Que seríamos sequestrados pela lógica ultra-neoliberal do Vale do Silício. E isso, naturalmente, impactou de forma vigorosa os cenários artísticos em todo planeta. A título de exemplo, não havia naquele momento, em 2013, nem o protagonismo das redes sociais, nem das plataformas de streaming. Tudo isso era bastante embrionário. O meu primeiro disco, por exemplo, foi lançado num esquema de download gratuito (o que mostra como estávamos pensando as coisas naquele momento).
Quando reflito sobre esses dez anos, penso que foram dez anos revolucionários. E não apenas pelo fato de que nossas vidas se transformaram drasticamente com a presença incessante da tecnologia no nosso cotidiano. Mas, mais intensamente, por ser uma época insurrecional. Poderia relembrar as primaveras e os movimentos de ocupação, as passeatas do BLM, o School Strike for Climate. Aqui no Brasil, nestes dez anos vivemos o golpe, o fascismo, a retomada da democracia.
Enfim, tudo isso impactou de forma muito decisiva a minha produção – seja pelo aspecto mais
sensível, aquilo que me afeta por viver a época e me faz querer depreende-la; seja, também, pelo fato de que a minha profissão foi mudando, se remodelando, se readaptando às logicas do novo tempo.
Portanto, chego aqui hoje um tanto afetado por tudo isso. Confesso, em alguns momentos, de bode, sentindo que há uma naturalização de um ideal de artista com o qual pouquíssimo me identifico – esse artista refém do mercado, performando e publicizando nas redes um modelo de vida consumista, narcisista; os meus ídolos todos eram o oposto disso, então, acho um tanto desorientador viver, exclusivamente, sob a batuta do deus-dinheiro, do deus-mercado, do narciso triste e obcecado. Mas, em outros momentos, recobro o sentido da escolha, o porquê de ter eleito esse labor como forma de vida. Sinto que nunca foi tão necessário se opor ao modelo vigente.
Sinto, também, que há um estado de adoecimento, e que aos artistas é requerido esse devotamento, esse trabalho de manter acesa a chama da vida. Há algo aí, de bater o tambor para que estejamos atentos, para que nossas cognições são se entreguem tão facilmente à letargia. Então, chegar aqui hoje, dez anos depois, é, sob muitas perspectivas, celebrar. Celebrar a sã insanidade. E a clarividência.
Arte e Design: Tiago Macedo
Década, seus mais novo disco, é composto por 13 faixas e traz reinterpretações de canções de sua autoria, regravações de canções que você compôs para outros artistas e duas inéditas. Como se deu a seleção do repertório? Ficou algo de fora que estava nos planos iniciais?
Foi difícil encontrar um caminho para definir o repertório. Pois, haviam muitos caminhos possíveis. Por exemplo, eu poderia: 1) regravar apenas as canções mais conhecidas do meu repertório; 2) regravar apenas uma seleção de canções que eu havia composto para outros artistas, mas que eu não havia registrado ainda; 3) regravar as canções mais emblemáticas deste período... Enfim, eram muitas as possibilidades.
Comecei, então, por definir que gostaria de apresentar algumas canções inéditas. Dar ao público, à crítica, ao tempo, a mim mesmo, enfim, a chance de mostrar por onde andava a minha sensibilidade. “Faz o teu” e “O amor fincou raízes por aqui” carregam, cada uma à sua maneira, uma temática muito valiosa para mim hoje. De um lado, há uma canção mais densa, que sobrevoa esse tema da crise climática, do aquecimento global, mas reorientando o foco, a bússola para uma dimensão mais pessoal. Uma canção filha de uma sensação dura, de eco-ansiedade, mas, ainda sim, um acalanto, uma lullaby. De outro lado, uma canção de amor (que dedico à minha companheira Victoria Leão Vendramini e ao meu poeta predileto, o Leonardo Fróes) que tenta realizar essa reintegração do humano a aquilo que convencionamos chamar “natureza”. Entendendo essas duas instâncias como uma só. Uma única. Essas duas obras, portanto, acabaram por criar uma espinha dorsal do projeto, e também, orientaram uma temática, um ponto de atração para as outras canções que eu gostaria de regravar.
O passo seguinte, então, foi escolher canções dos discos que eu havia lançado. Como eram cinco discos, até então, escolhi regravar uma de cada álbum. Busquei em cada trabalho canções que se associassem, de alguma forma, àqueles grandes temas das canções inéditas. Vieram, então, “Porquê da Voz”, “Touro Indomável”, “Faz Parar", “Isso também vai passar” e “Desejos de um leão”.
Em seguida, como haviam canções minhas presentes em outros 60 discos, pensei, vou achar aqui seis canções, 10%, que se irmanem ao repertório. Dali vieram “Minha mãe” (originalmente gravada por Gal e Bethânia), “Espiral” (originalmente gravada pela Ceumar), “O fazedor de rios” (originalmente gravada por Luiz Gabriel Lopes), “Desculpa” (originalmente gravada pela Nina Fernandes), “Oriki” (originalmente gravada pelo Flavio Tris), e “Lute contra mim” (originalmente gravada pela Paula Mirhan).
Penso que o “Década” é, para além de um disco comemorativo, um disco propositivo. Ele retoma assuntos que estavam objetivamente colocados no “Nações, Homens ou Leões”, meu disco mais recente. E isso faz dele um disco muito especial neste momento.
Phono: O disco tem concepção da Filipe Catto e direção artística de sua autoria. Como se deu o processo de gravação? Por que vocês optaram por um formato mais intimista de voz e violão?
A Filipe foi uma das primeiras intérpretes das minhas canções. Mais tarde, nos tornamos amigas, depois parceiras. E ela, que é uma artista extraordinária, uma das maiores da minha geração, alguém por quem eu tenho profundo respeito, tem um olhar muito generoso sobre mim, sobre a minha obra. Daí, numa visita que fiz em sua casa no início deste ano, ela me sugeriu essa ideia. Ela identificava uma particularidade no meu jeito de combinar voz e violão, de transfigurar tudo isso em canção. E me disse para fazer esse disco. E eu só pude aceitar. Gravei todo o disco em dois dias.
Confesso que sofri. Senti-me nu. Muito nu. Vi expostas as cruezas, os segredos, as oscilações que fazem de mim quem sou. Mas, aos poucos, fui entendendo, e mais, sentindo que essa é a grande beleza deste disco. Estar nu. Oferecendo minhas canções, meu coração, desnudados.
Atualmente, você mora em São Paulo, mas também já estabeleceu residência em outras cidades como o Rio e Belo Horizonte. Se a arte é fruto do meio, é possível dizer que viver nessas capitais interferiram no seu fazer artístico?
Muitíssimo. Tudo interfere. Onde se vive, quais as condições materiais, a época, a política, com quem se relaciona, com quem se cria interlocuções, por quais lentes se enxerga e busca entender o mundo, a vida, as coisas todas.
Eu diria que Diamantina é o berço, o colo, a nascente. O ventre. As longas tardes, o som das pedras, o tamborilar de dedos sobre teclas.
Belo Horizonte foi o corte. A cidade que me fez adulto ainda adolescente. E onde eu me formei. Lá eu descobri o sonho, os discos formadores, os primeiros acordes. Também, as primeiras fronteiras, os primeiros obstáculos. A cidade de onde eu me projetei. Me saltei.
O Rio é a cidade plástica, onírica, impossível, trágica. Lancei o meu primeiro disco lá. Com a colaboração de artistas imensos. Foi a cidade onde toquei em roda de samba, sessão de improviso livre e gafieira. Onde dancei maracatu, salsa e baião. O pluralismo da cidade, de certo modo, me inventou.
Por fim, São Paulo. A cidade onde me profissionalizei. Onde estabeleci os laços para fazer do labor uma profissão. A cidade da liberdade e da opressão. A cidade onde branco é branco, preto é preto – mas retribuo a piscadela do garoto de frete do Trianon; eu sei o que é bom.
Transitar é, desde o princípio da vida na Terra, o gesto constitutivo da invenção. Errare humanum est. E assim, eu vou inventando a minha vida.
Phono: Por fim, com disco novo na praça quais são seus planos futuros?
Primeiramente, quero voltar a me apresentar com mais assiduidade. A pandemia abriu esse clarão na minha vida, essa distância. Quero, então, poder comemorar essa Década junto de quem queira trocar essa energia, de canções, sonhos, de vida. Em breve, portanto, anuncio datas de lançamento.
Daí, depois disso, o que acontecer eu volto aqui no Phono pra contar. Porque os planos são muitos. :)
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