Tivemos duas "sessões" do sarau Tranquilo no Mamão com Açúcar, local que é uma iniciativa maravilhosa das incríveis Bell Magalhães e Carol de Amar, dois “mulherão da porra” que agitam nossa cena musical. Não sei se foi o clima de praia ou o calor, mas o fato é que os artistas que se apresentaram nessas duas edições me fizeram pensar sobre como os músicos se valem de seus corpos na música produzida hoje.
Isso mesmo, fiquei ali, com o pé na areia assistindo aos shows e pensando os vários modos por meio dos quais a música de um artista pode trazer sua corporeidade. E como sua corporeidade pode nos dizer de sua música. Será que atualmente os artistas se preocupam mais com o "visual" do que antes? Interessante pensar que em outras épocas já foi possível identificar as tendências musicais, rotulá-las e criar uma narrativa histórica, mas havemos de concordar, hoje em dia isso é bem difícil.
Então, vou propor uma tentativa de delimitar ao menos dois campos de escolhas estéticas que estariam por detrás da maioria das produções musicais de nosso tempo: ou o artista se vale de recursos eletrônicos, tais como beats, samples e faz aquela música composta na tela, ou ele faz à moda antiga, estilo violão, papel e caneta. Estes dois modos de fazer música, salvando as exceções que conseguem os fazer equilibrar e coadunar, costumam ser facilmente identificáveis nos trabalhos novos que chegam todos os dias até nossos ouvidos. E a presença do corpo é talvez o fator que vai, em um futuro, determinar uma forma de traçar alguma direção possivelmente identificável de tendências musicais, independentemente de estilos.
Tanto o rapper que canta em cima do beat como o cantautor que canta em cima de sua execução instrumental, se valem de seus corpos em alguma medida. Um paradoxo muito interessante é o fato de os músicos mais "tradicionais" fazerem questão de tocar suas canções ao vivo, sem utilizar recursos eletrônicos na defesa de uma execução musical orgânica e singular, mas não se preocupam com figurinos, cenários etc, enquanto novíssimos artistas chegam com propostas musicais que Leo Morais, proprietário da nossa querida casa de shows A Autêntica, chamou de "karaokê autoral", isto é, o artista faz uma produção musical em estúdio e canta em cima dela nos shows, sozinho, sem a necessidade de outros músicos, mas com uma imensa preocupação com maquiagem, figurino, iluminação, identidade visual etc. que os músicos mais "tradicionais" não têm.
Estes modi operandi aparecerem mais facilmente nas coberturas que venho fazendo do Sarau Tranquilo, já que nele as canções aparecem praticamente despidas, pois não é permitida a utilização de samples. Os artistas se veem obrigados a mostrar suas composições em formatos minimalistas, nos permitindo ouvi-las em um estado quase "orgânico". Isso nos mostra como é híbrida a produção musical atual e como de fato é difícil identificar uma tendência dominante.
Certa feita, o mencionado Leo Morais, em uma de nossas reuniões, lembrou que antes da pandemia se via nos grupos de WhatsApp um pessimismo muito grande entre os produtores, agenciadores e empresários do mercado musical. Aquela profusão de informação que a nova geração estava recebendo havia feito com que alguns símbolos caros para a indústria musical houvessem perdido a força. Uma camiseta dos Ramones era apenas o complemento do look de alguém que nem sabia do que se tratava e as camisetas de séries do Netflix vendiam mais do que as de bandas. Veio o isolamento social e tudo mudou. O público voltou ávido pela experiência ao vivo e os artistas chegaram cheios de produções e ideias igualmente ávidos para fazerem seus lançamentos. Certamente toda essa circunstância colaborou para esse hibridismo e diversidade das propostas musicais de nossa época.
Naquela primeira noite de terça-feira, no Mamão com Açúcar, tivemos Gabriel Gonti, Zé Manoel com participação da nossa Nath Rodrigues e Bruno Berle. Todos músicos que certamente gostam de compor no instrumento mais do que na tela. “Meu segundo disco, diferentemente do primeiro, foi feito todo na tela, com beats e samples na produção do talentoso Cidoca” nos contou Nath Rodrigues que tocava seu violino enquanto Zé Manoel imaginava a harmonia movendo os dedos no ar. Como não havia um teclado no camarim, Zé Manoel esbanjava domínio musical ao conseguir conceber uma sequência de acordes para o solo de violino da Nath na cabeça, enquanto ela dizia para ele simplificar a harmonia. Não deu outra, Zé Manoel subiu ao palco e tocou a harmonia original com perfeição.
Nath havia acabado de contar sobre a transição que havia feito de seu primeiro para o segundo disco, enaltecendo as vantagens da utilização de samplers que permitiria aos artistas a possibilidade de circular de modo mais viável, enquanto Zé corporificava uma complexa harmonia para executá-la ao vivo em uma presença corporal que se deixa mostrar nas notas que ele toca de modo quase imperfeito e, por isso mesmo, único. Presenciar essa cena no camarim me inspirou a pensar as relações entre estes dois modos de fazer música que são, cada um a seu modo, uma entrega sempre corporal por meio da voz, único elemento que, se não for "ao vivo", gera inclementes acusações de "Aí não vale! É playback!"
Neste tutto vale do mercado musical vemos ecos de diversos momentos da música brasileira, ora sampleados em beats, ora na própria musicalidade corporal de cada artista. A voz de Zé Manoel, por exemplo, traz aquele canto “suingado” que é uma característica da MPB mais “tradicional”. Assim como Gabriel Gonti que, com sua pegada mais pop romântico, desfilou suas baladas com direito a fã clube cantando tudo.
Mas foi Bruno Berle que entregou a performance mais ímpar da noite. Ele chegou dizendo que seu ônibus sairia ainda naquela noite, compartilhando com toda a plateia sua condição, Berle tocou suas canções com um violão de nylon preciso e bonito, com participação incidental de Jeniffer Souza, ele se entregou para o momento ao ponto de fazer mais de um bis, criando um misto de prazer de viver aquele instante e a preocupação com o horário de saída do tal ônibus, que contagiou todo mundo intensificando aquela vivência corporal e única que é participar de um show.
Na segunda dose de Mamão com Açúcar tivemos para a abertura da noite, Armandinho. Aquela lenda viva da música brasileira, filho de Osmar que inventou o trio elétrico ao lado de Dodô, este músico inventou o instrumento que toca: a guitarra baiana. "Inseri a quinta corda pra ter mais grave, coisa de roqueiro!" nos disse Armandinho, do alto de seus setenta anos, tomando seu whiskie e contado casos naquela que era sua terceira noite seguida de show na cidade. O músico veio para Belo Horizonte para participar do festival Alvoroço, outro evento muito interessante que proporcionou longos encontros intimistas em sua primeira edição que aconteceu em novembro deste ano.
Armandinho desfilou suas canções conhecidas pela parcela 30+ da plateia, que no Tranquilo nunca é a maioria, diga-se de passagem. Mas como ele domina o instrumento com uma destreza que parece algo espontâneo e natural todo mundo ficou impressionado com sua apresentação. Sua guitarra, feita exclusivamente para ele, se confunde com seu próprio corpo que coreografa cada lépido arpejo, sua performance é um verdadeiro emblema da música brasileira, pois ele mimetiza caras e bocas de grandes guitarristas de rock, mas tem a pegada de um bom chorão, isto é, aquele músico que toca o choro, estilo bem brasileiro.
Depois vêm os cariocas " Os Garotin" de São Gonçalo, um trio de cantores da mais autêntica tradição do pop soul soando ora Jamiroquai, ora Jota Quest, mas com muita personalidade. Três meninos estilosos que cantaram tendo apenas uma guitarra tocada por um deles como acompanhamento. Uma guitarra deliciosa com timbres e cor impecáveis. Tudo muito harmônico e muito bem tocado. Mesmo fazendo um estilo de som "datado", isto é, facilmente reconhecível naquela linha histórica que temos na cabeça, eles não parecem, nem soam datados. Há algo de contemporâneo nas letras e na postura que os faz dialogar com o público que cantou tudo, repetindo os refrães para que eles pudessem fazer vídeos junto com a plateia em um celular que eles revezavam no meio do show.
Por fim sobe ao palco Hot, conhecido rapper de nossa cidade que aceitou este desafio de cantar sem uma base de beats. Acompanhado de um violão e um cavaquinho e duas vocalistas, Hot mostrou as músicas de seu novo trabalho em um estado que provavelmente elas nunca estiveram. "Cês pediram só cinco músicas, então nós ensaiou só cinco mesmo!" soltou o rapper que, para não deixar de fazer um bis, chamou Oreia que estava na plateia naquele espírito DV Tribo, para um free style que foi o ponto alto da apresentação de Hot.
Como é de praxe no Tranquilo, não tivemos beats com seus andamentos precisos, nem samplers com suas deliciosas repetições impecáveis. Tivemos os corpos fazendo música com e a partir daquele momento único. Não que a música mais “eletrônica” não seja capaz de emocionar ou de proporcionar momentos incomparáveis, pois ela é sim muito poderosa e nós amamos os beats, mas o fato é que o corpo sempre vai nos mostrar onde estamos pisando, o que está acontecendo e explicitar nossas imperfeições, característica do humano que inventou a máquina para si, mas será sempre demasiado humano.